27 de abril de 2004



Testemunhos de Abril

* "Na manhã do dia 25 de Abril de 1974 eu estava em casa a arranjar-me para ir para a Faculdade de Letras na Universidade do Porto (era então aluna) quando o telefone tocou. Era um tio de Lisboa dizendo para não sairmos de casa porque havia uma revolução.
Já não me lembro se saí ou não mas lembro-me de ter ido à janela e não ter visto nada que me mostrasse que estava a acontecer uma revolução.
Lembro-me também de ter visto o meu pai e o irmão dele darem um abraço do tamanho do mundo!
O que me vem à memória?
Depois de ter ido à janela e não ter visto nada de estranho na rua, era a avenida da Boavista, no Porto, comecei o meu dia.
O chuveiro, o pequeno-almoço, o apanhar o eléctrico para os Leões.
Faculdade de Letras fechada, Piolho aberto, era o que importava!
Colegas, amigos, muitos ali estavam.
Por ali ficámos.
E por ali andámos nos dias que se seguiram.
Seguiram-se dias e dias de RGA's, RGA's, RGA's, era um nunca acabar de RGA?s!
A esplanada do Piolho sempre cheia, era Primavera, os dias eram mais bonitos do que alguma vez tinham sido!"


Emília Miranda




* "O meu pequeno núcleo familiar [Pai, Mãe, Eu, Mano] era parte integrante de duas famílias, evidentemente, a do Pai e a da Mãe.
Era giro, porque a família do meu pai era conservadora e o meu pai um revolucionário; e a família da minha mãe era liberal (muito anti-salazarista) e a minha mãe, conservadora.
Não imaginas as combinações que daqui resultaram! O meu pai, embora nunca tenha sido do PC, era leitor clandestino do Avante antes da Revolução! E o pai da minha mãe já obtinha clandestinamente as canções do Zeca, Manuel Freire e outros, antes da revolução!
A mãe da minha mãe, décadas antes do 25 de Abril - claro! - foi namorada do Humberto Delgado!
Se tivessem ido todos presos... talvez nunca se tivessem encontrado e eu nem tivesse nascido.

Fata Morgana




* "Tinha 22 anos. Estudava e esperava (ou desesperava) que me chamassem para o cumprimento do serviço militar. Considerava aquela guerra injusta e ponderava seriamente na hipótese de desertar que, ao contrário do que pretendem hoje alguns "espertos", não era um acto de cobardia, mas sim de muita coragem. Coragem que eu ainda não tinha toda dentro de mim.

Desenvolvia, desde os meus 18 anos, alguma actividade semi-clandestina contra o Estado Novo. Por exemplo, com um grupo de amigos integrava, eu como professor de Português, um projecto de aulas para adultos carenciados, a quem não cobrávamos um tostão. Na faculdade onde estudava, participava, também, numa série de actividades políticas contra o estado do ensino... Enfim, histórias compridas e, talvez, chatas para te trazer agora.
Posso dizer-te que poucas semanas antes do 25 de Abril atirei ao mar, no Guincho, uma máquina de escrever velha onde "batia" os stencils de comunicados clandestinos... E perguntas-me tu porque teria eu atirado a maquineta ao mar? Simples: alguém me avisou que eu andaria a ser vigiado pela polícia política (a PIDE, como saberás) e como as máquinas de escrever eram facilmente identificáveis pelo tipo de letras e falhas na impressão das mesmas, lá foi a máquina, companheira de muitos gritos de revolta, para o fundo do mar do Guincho. Nem te passa pela cabeça as explicações malucas que tive de inventar para atenuar a ira do meu pai pelo desaparecimento da máquina...
Conto-te este pequeno acontecimento, apenas para ilustrar algo que era então corrente, nos meios que eu frequentava, e que hoje te poderá parecer tão sem sentido ou, até, estranho.
No 25 de Abril, por volta das sete horas da manhã, telefonaram-me para casa e disseram: "Está a ser hoje. Os militares estão na rua, pá. Hoje, ou vai ou racha!..." (qualquer coisa de parecido com isto. Não te
garanto que tivesse sido dito exactamente com estas palavras...)

Saltei da cama. Vesti-me a correr. Avisei os velhotes - que sempre foram boas pessoas e, apesar das preocupações, davam cobertura às minhas "avarias" - e sabes o que fiz? Como era fotógrafo amador - para ganhar uns tostões... - agarrei na minha velha máquina fotográfica Voïgtlander, peguei em meia dúzia de rolos a preto e branco e fui de comboio para a baixa de Lisboa.
Cheguei lá, seriam cerca de 8 horas da manhã. Corri até à Praça do Município... e começou a aventura!
Soldados por todo o lado, em posições de combate. Viaturas militares imensas e estranhas na baixa pombalina. E as pessoas cinzentas do dia anterior, de repente sorriam. Apreensivas, primeiro. Depois, em
correrias de querer abarcar tudo o que se passava. Depois os gritos, os vivas à liberdade, à vitória... mesmo sem haver grande percepção de quê.
Sabia-se, apenas, que era "contra o regime" e bastava! E começou a ser um mar de gente a invadir a baixa de Lisboa, apesar dos avisos reiterados para ninguém sair de casa.
E aí se terá passado o fenómeno para mim mais marcante da Revolução de Abril: de súbito liberto da opressão em que vivia, o povo irmanou-se aos soldados, sobrepôs-se a eles, encheu-os de vivas e de cravos, tomou a Revolução como sua, numa anarquia feliz e incontida, em que todos éramos irmãos... excepto, claro, os "pides" a quem de imediato se começou a dar caça sem tréguas (pois muitos deles eram bem conhecidos), ainda que não se tenha vertido nessa vingança uma gota de sangue, ao contrário do que
viria a fazer a meia dúzia de cães raivosos que no edifício da António Maria Cardoso dispararam indiscriminadamente contra a multidão desarmada.
Por todo o lado se organizavam comícios espontâneos. As pessoas redescobriam a arte de se reconhecerem nos outros, em plena luz do dia. Pois é... e a meia dúzia de rolos fotográficos foram
incomensuravelmente poucos para documentarem tanta felicidade."

Jorge Castro


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